O Grupo de Estudos de hoje será conduzido por Delano Mothé.

Amor e Ódio Simultâneos, nas Relações Humanas.

(Correspondência do Padre Rafael – 23.)

Benjamin Teixeira
pelo espírito
Gustavo Henrique.

Padre Rafael precisou repreender um elemento do grupo, por tornar a assunto extremamente desgastante, que houvera sido motivo, inclusive, de afastamento de pessoas da paróquia, dois anos antes. O destinatário de sua epístola eletrônica costumava andar, freqüente e intimamente, com a autora intelectual da perlenga, no período da turbulência que culminou com o desligamento de alguns paroquianos. Após enviar-lhe o texto de repúdio pelo retorno à questão já resolvida, o sacerdote católico ficou sabendo, da parte do próprio interlocutor, à distância (bem como por meio de sua consorte, que participara de tudo), que não fora este, à época do entrevero, inteirado da maledicência em curso. Rafael julgou interessantíssimo o episódio, sobremaneira pelo fato de Felícia, o Anjo Bom que o inspirava, haver-lhe sugerido que digitasse o e-mail, sem ditar-lho propriamente à acústica mediúnica, como normalmente o fazia, em episódios semelhantes.

Ao final da missa do domingo seguinte, o jovem que fora foco da reprimenda “inapropriada” disse-lhe que, pelo amor que consagrava ao mentor devoto do Cristo, jamais sairia de sua boca uma palavra que constituísse qualquer ordem de ataque, direto ou indireto, à sua pessoa ou à sua obra. O rapaz foi sincero e exalou amor para o coração do bondoso ancião, que agradeceu a ternura do discípulo d’alma. Dois dias depois, entrementes, envolvido por energias sublimes do Além, que lhe inspiraram retornasse à pendência, o líder religioso escreveu o texto que se segue:

“Meu muito caro amigo:

Esclarecendo-lhe, quanto à fala que me dirigiu na despedida de domingo – “Que qualquer palavra que viesse de você, para mim, nunca deveria ser interpretada como um ataque, por você me amar” –, é importante se considere o que a Psicologia Profunda diz: é possível que amemos alguém por um nível da personalidade e o odiemos por outro – muito mais: isso é, segundo Jung (pasmemos), simplesmente um padrão. Por tal razão, pais costumam ser os maiores assassinos dos sonhos e da felicidade de seus filhos (indo, amiúde, contra a vocação e os impulsos afetivos que lhe são próprios), jurando, diante de Deus, com toda sinceridade, fazerem tudo por amor. Detalhe perverso deste princípio: quanto mais o tabu da não-aceitação da possibilidade de se odiar um filho impedir que um pai ou uma mãe percebam-no conscientemente, mais esta tendência lhes adentra no plano inconsciente do psiquismo, degradando mais gravemente e mais lesivos tornando-os, nos movimentos contra, exatamente, aquele que lhes é “o mais amado ser do mundo”, com a camuflagem dos ataques, disfarçados em: “preocupação”, “punição para o bem de meu filho” e “salvá-lo de um caminho de sofrimento”, entre outras justificativas e racionalizações comuníssimas e acatadíssimas socialmente, visto que, é claro, jamais a personalidade-padrão do orbe de hoje suportaria admitir-se cruel ou injusta com os seres que mais ama e por quem mais deseja, sinceramente (no patamar consciente de sua mente), zelar, nutrindo-os e fazendo-os desenvolver-se plenamente.

Aqui, nesta escola magnífica de Sabedoria, como trabalhamos com este patamar mais alto de lucidez, levamos em conta todas estas particularidades, para não nos enganar a respeito de nós mesmos, sentindo-nos “bonzinhos” e “certinhos”, a ilusão que nos introduz, célere e facilmente, no auto-engodo cruel da hipocrisia das “pessoas decentes e dignas”, tão comum nos meios religiosos. O próprio Jung, célebre psiquiatra suíço, declarou que não devemos procurar ser “bons”, mas íntegros. E, de Sua parte, o Cristo afirmou, categoricamente, quando o alcunharam de “Bom”: “Bom, só Deus o é.”

Temi que, ao dizer-me o que disse, embora visivelmente com tom amoroso e sincero, você houvesse chegado a três conclusões possíveis, a respeito da última missiva eletrônica que lhe enderecei: 1) que supusesse haver-me pego num “vacilo de interpretação sobre você”; que, então, 2) eu tivesse tomado “iniciativa errada” em relação a você; e que, como desdobramento disso, 3) eu houvesse sido “injusto com você”. Imaginando que tenha desembocado nas três inferências, acertou você na primeira, mas não nas duas seguintes. Teríamos que renunciar à lógica, para supor, da conduta estabanada de nossa antiga amiga em comum, nos falatórios irresponsáveis a que se confiava, que ela, andando tanto com você na época, não lhe houvesse aberto aquela conversa, deveras debatida entre os outros dois casais com quem você e sua consorte conviviam, muito proximamente. Foi-me uma grata surpresa saber que não lhe foi nada participado. No entanto, ironicamente, a despeito desta premissa errada, logo no disparar de minha motivação a escrever-lhe, o fato de precisar seguir a razão e a consciência do dever de agir como professor do grupo fez com que viessem à tona assuntos que nunca tinham sido tocados com você e sua esposa, e tampouco com vários componentes do Núcleo Diretor de nossa Casa. Por isso, disse-lhe que me sentia compelido pela voz da consciência a escrever, mas Felícia, o Anjo Impoluto, não ditava o texto para mim. O que não verbalizei, contudo, foi que Ela não discordou de que eu redigisse o que lhe foi remetido; muito pelo contrário: disse que DEVERIA compor e enviar-lhe a carta, nos termos em que a estava escrevendo. Em outras palavras: Ela não poderia digitar aquelas linhas, uma vez que o fato não havia acontecido, mas sabia que a “falha de interpretação” seria importantíssima para um “acerto muito maior”, porquanto surtiria o efeito de que não só você, mas também os demais de nosso centro decisório, na Igreja, viessem a se inteirar de assuntos importantes do histórico e da filosofia da organização, favorecendo, por fim, progressiva harmonia em nosso núcleo.

Assim, ao me fazer a recomendação do domingo, no sentido de eu não incorrer neste mesmo “erro de interpretação”, por você me amar, sinto-me impelido a dizer que, apesar de, muito humano, poder resvalar nesta ordem de equívoco inúmeras vezes ainda, isso (o reconhecimento de minha falibilidade) não afasta a possibilidade de eu voltar a agir da mesma forma, em reprimenda, sempre que presumir em você, ou em qualquer uma das ovelhinhas que me foram confiadas por Nosso Senhor, gestos de desamor (porque também o amo). Enviar-lhe-ei, assim, novas cartas “virtuais”, quando notar que meu bom senso e minha consciência houverem feito uma leitura semelhante à de domingo, ou seja: atentando para a possibilidade de que existe, mesmo naqueles que me amam, uma camada do psiquismo que, a dizer por baixo, “não vai muito com a minha cara” (risos), não apenas para que isso fique claro (porque inexoravelmente existe, em algum percentual de conteúdo psicológico, como afirmou Jung), mas para que também resolvamos as questões concretas que subjazam a cada conflito ou crise relacional surgida, de modo que, crescentemente, fortaleçamos nossos elos de afeto, confiança, lealdade e admiração recíprocos.

Em resumo: os Mestres da Espiritualidade aproveitam todas as circunstâncias, em particular nossa Santa Felícia, que nos conduz de mais perto, a fim de que aprendamos lições novas, inclusive através de nossas falhas de interpretação.

Amor sempre (Será mesmo? – risos), Pe. Rafael.”


(Texto recebido em 17 de março de 2009. Revisão de Delano Mothé.)